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  • Carlos Augusto S. da Fonseca

O Cego de Jericó - Parte 2/2 - Interpretação por Analogia

I - Introdução

No artigo anterior, concluímos que os três relatos da cura do cego, em Mateus, Marcos e Lucas, apesar de parecerem contraditórios quanto ao momento da ocorrência, são perfeitamente harmônicos e complementares entre si. Há um destaque para o texto de Lucas com relação à sua estrutura.

Vimos que o Evangelho de Lucas narra, em sequência, dois eventos ocorridos na caminhada do Senhor Jesus em direção a Jerusalém, mas sem se ater a sua ordem cronológica: (a) a obra de Deus na vida do cego (cura do cego próximo à porta de entrada e saída da cidade) e (b) a conversão de Zaqueu dentro da cidade.

A estrutura textual peculiar de Lucas nessa narração, comparada com os mesmos eventos em sequência cronológica, é mostrada no quadro abaixo.




Elipse em Lucas

Como visto acima, podemos entender que Lucas omitiu dois detalhes, os quais podem ser inferidos da interpretação feita até aqui: (1) ele não mencionou que Jesus não respondeu, diante do clamor do cego, e passou direto quando se aproximava da cidade; (2) ele também não mencionou que Jesus somente curou o cego no dia seguinte pela manhã, quando estava saindo da cidade. Com o preenchimento dessas lacunas, torna-se fácil consolidar os três relatos dos Evangelhos e confirmar a interpretação feita no artigo anterior sobre o cego de Jericó.


É possível existirem lacunas nas narrações dos evangelistas? Sim, e de fato existem. Basta, por exemplo, comparar as três narrações da cura do cego de Jericó para verificar que há detalhes que um evangelista narra e que outro não narra, e assim eles se completam.

Outro exemplo é o relato da cura da filha da mulher siro-fenícia por Mateus e por Marcos, que contêm lacunas que somente podem ser completadas pela leitura conjunta desses textos paralelos.


Há também lacunas para as quais não há textos paralelos. Quando nos deparamos com eles, precisamos recorrer à analogia para interpretá-los.

Por meio da analogia, comparamos textos que narram eventos semelhantes, em contextos semelhantes, dentro do texto maior da própria Bíblia. Assim, as Escrituras interpretam a si mesmas.


II - A Interpretação do Relato de Lucas

A interpretação do texto de Lucas 18:35-43 foi realizada no artigo anterior e a apresentamos a seguir, porém dividida em seis partes:


(1) Jesus caminhava em direção a Jerusalém e decidiu passar a noite em Jericó. Quando se aproximava da cidade, um cego, que estava sentado junto ao caminho, ao saber que se tratava de Jesus Nazareno, começou a clamar ao Senhor para que tivesse misericórdia dele.


(2) Jesus, porém, apesar de ouvir o clamor do cego, continuou o seu trajeto e não o atendeu, e então entrou na cidade de Jericó.


(3) Dentro da cidade, Jesus encontrou Zaqueu, que se converteu ao Senhor e em cuja casa Jesus hospedou-se naquela noite.


(4) No dia seguinte, na saída da cidade, quando Jesus ia para Jerusalém, o cego estava de novo à beira do caminho e novamente clamava, mas, então, tinha junto dele outro cego.


(5) Algumas pessoas repreenderam o cego para que não incomodasse o Mestre, visto que Jesus já não lhe havia dado atenção no dia anterior.


(6) Mas, desta vez, o Senhor parou e atendeu, tanto ao primeiro quanto ao seu companheiro.


Lacuna do Texto. A parte (2), acima, não consta do texto de Lucas e é a lacuna que queremos integrar por meio da analogia.

Ao validar essa parte, validamos toda a interpretação.


Questões para validação da interpretação por analogia com inclusão do item (2)


1. Seria possível que o Senhor não tivesse atendido de imediato ao clamor do cego?

Sim, seria possível, porque ele já havia agido assim antes. Veja fatos semelhantes nas seguintes passagens análogas:


  • a mulher siro-fenícia: Mateus 15:21-28 e Marcos 7:24-30.

23 Mas ele não lhe respondeu palavra. E os seus discípulos, chegando ao pé dele, rogaram-lhe, dizendo: Despede-a, que vem gritando atrás de nós. Mateus 15:23


  • os dois cegos de Cafarnaum: Mateus 9:27-33.

27 E, partindo Jesus dali, seguiram-no dois cegos, clamando, e dizendo: Tem compaixão de nós, filho de Davi.

28 E, quando chegou à casa, os cegos se aproximaram dele; Jesus disse-lhes: Credes vós que eu possa fazer isto? Disseram-lhe eles: Sim, Senhor. Mateus 9:27,28.


2. Por que razão Jesus não atendeu de imediato a essas pessoas mencionadas nos exemplos acima?

Jesus poderia ter objetivos um pouco diferentes em cada caso, mas, no sentido geral, ele queria evitar tumultos e aglomeração de multidões ao redor de si. Podemos entender isso da seguinte maneira:


(1) quando Jesus curava um enfermo ou doente, era comum o fato de logo se aglomerarem multidões em busca de cura.

 exemplos: Marcos 1:29-37 (ao saber que Jesus curou a sogra de Pedro, toda a cidade se juntou à porta e Jesus os curou e expulsou os demônios); Marcos 1:40-45 (Jesus curou um leproso e ele começou a divulgar isso, de modo que se juntou tanta gente que Jesus já nem mais conseguia entrar nas cidades); Marcos 2:1-4 (ao saberem que Jesus havia retornado para casa, uma multidão se juntou lá).


(2) Quando isso acontecia, em muitas vezes o fato se transformava em um empecilho para o bom desempenho da missão do Senhor.

exemplos: Marcos 2:45 (por causa da multidão, Jesus já não podia entrar nas cidades); Marcos 3:7-10 (as pessoas se arrojavam sobre Jesus, de modo que ele precisava ficar dentro de um barquinho afastado da areia para poder ensinar à multidão na praia); Marcos 3:20 (devido à afluência da multidão, Jesus e os discípulos nem sequer podiam comer pão).


(3) Por isso, por muitas vezes o Senhor proibia as pessoas de propagarem o milagre que o Senhor efetuou em suas vidas

– exemplos: Marcos 5:22-24,41-43 (na ressurreição da filha de Jairo, Jesus mandou expressamente aos pais da menina que ninguém o soubesse); Marcos 7:31-36 (na cura de um surdo em Decápolis, Jesus ordenou-lhe que não o dissesse a ninguém);


(4) Próximo ao fim do seu ministério, Jesus começou a se retirar com os seus discípulos para locais afastados da multidão.

– exemplos: Marcos 6:31-34 (retiro para um local deserto); Marcos 7:24-25 (retiro para a região de Tiro e Sidom); Marcos 9:30,31 (no caminho de volta de Cesareia de Filipe para a Galileia).


(5) Quando Jesus se retirava com os discípulos, o seu objetivo prioritário era prepará-los para os desafios que enfrentariam, especialmente em relação aos sofrimentos e morte do seu Mestre na cruz, e dar-lhes os contornos espirituais da futura igreja, o corpo de Cristo.

– exemplos: Marcos 9:30-32 (Jesus começou a dizer aos discípulos que convinha que ele fosse preso, maltratado e morto, mas que ressuscitaria no terceiro dia); Mateus 16:13-21 (Jesus ensina sobre a formação espiritual do corpo de Cristo e sobre a disciplina na igreja).


3. Quais eram as prioridades de Jesus quando não respondeu de imediato a quem clamava a ele?

Em todos os casos, Jesus tinha pressa. No caso da mulher siro-fenícia, Jesus estava preparando os discípulos, mas o seu tempo para realizar a obra do Calvário e retornar ao céu estava próximo. Por conta disso, ele não poderia ser exposto na região de Tiro e Sidom, pois então teria de atender a todos os enfermos que certamente se ajuntariam, com prejuízo para a sua missão prioritária. Em razão disso, ele não poderia curar a filha da mulher siro-fenícia de imediato, no local onde ela estava, pois seria exposto. Mas ele a curou, não presencialmente, mas à distância, quando a mulher então já havia conseguido se aproximar dele e entrado na casa onde ele estava hospedado com os discípulos - Marcos 7:24,25 e Mateus 15:22-28.


No caso do cego de Jericó, por sua vez, é perceptível que Jesus tinha pressa, pois o seu objetivo era sair na manhã seguinte em direção a Jerusalém para cumprir a sua última semana, a semana da Paixão (do sofrimento) - Marcos 10:32-34; Mateus 19:1,28; Lucas 19:11. Mas ele também queria, naquela tarde, passar um tempo com o novo convertido Zaqueu, além de tentar descansar um pouco à noite - Lucas 19:1-10.

Por conta disso tudo, seria mais estratégico curar o cego no dia seguinte, a fim de que não passasse a noite em Jericó atendendo uma multidão em busca de cura de suas enfermidades.


Objetivos espirituais.

No caso da mulher siro-fenícia, podemos ver que havia também uma razão espiritual e um plano de Deus na vida dela, de maneira que a sua fé foi provada e ela saiu transformada daquela experiência com Deus - Mateus 15:28.

Da mesma maneira, na cura do cego de Jericó, podemos entender que a sua fé também foi provada e aperfeiçoada ao não receber a resposta imediata do Senhor - Lucas 18:40-43.


III - Principais Analogias na Interpretação de Lucas


Analogia na Elipse

A. A mulher siro-fenícia. Mateus informou que Jesus não respondeu de imediato à mulher. Marcos não narrou esse detalhe.

B. O cego de Jericó. Por analogia com Marcos, acima, inferimos que Lucas deixou de narrar o detalhe de que Jesus não respondeu ao cego de imediato.


Analogia no Motivo da Repreensão das Pessoas

A. A mulher siro-fenícia. Desde que Jesus não respondeu nada à mulher que clamava insistentemente, os discípulos pediram ao Senhor que a despedisse de vez.

22 E eis que uma mulher cananeia, que saíra daquelas cercanias, clamou, dizendo: Senhor, Filho de Davi, tem misericórdia de mim, que minha filha está miseravelmente endemoninhada.

23 Mas ele não lhe respondeu palavra. E os seus discípulos, chegando ao pé dele, rogaram-lhe, dizendo: Despede-a, que vem gritando atrás de nós. Mateus 15:22,23


B. O cego de Jericó. Vemos fato análogo no relato da cura do cego de Jericó:

39 E os que iam passando repreendiam-no para que se calasse; mas ele clamava ainda mais: Filho de Davi, tem misericórdia de mim! Lucas 18:39

Neste caso, por analogia com o fato acima, podemos inferir que as pessoas repreenderam os cegos de Jericó pelo mesmo motivo equivocado dos discípulos (estes pediram ao Senhor para despedir a mulher): eles deduziram que Jesus não pretendia atender ao pedido e que os suplicantes apenas o incomodavam.


Analogia nos Motivos do Não Atendimento Imediato por Jesus

A. A mulher siro-fenícia. Neste caso, Jesus tinha pressa, pois o seu tempo se aproximava e ele precisava completar o preparo dos discípulos, e por isso não poderia se deter na região de Tiro e Sidom para atender multidões. Esse foi o motivo prático pelo qual ele não respondeu à mulher nem curou a sua filha de imediato. O segundo motivo era provar a fé daquela mulher e realizar uma obra mais completa na sua vida. As referências e detalhes já foram tratados acima.


B. O cego de Jericó. O caso é análogo ao da mulher siro-fenícia. Jesus, ao mesmo tempo, tinha pressa, e por isso não lhe convinha curar o cego no dia anterior, sob pena de ser detido por uma multidão em busca de cura, como também pretendia provar a fé do cego, a fim de que ele tivesse uma experiência mais completa com o Senhor.



IV - Conclusão

Por meio da analogia com diversos textos de eventos semelhantes, foi possível integrar a narração da cura do cego feita por Lucas, visto que há uma lacuna na sequência de eventos.

Cada escritor, ao narrar um evento, concentra-se no que mais lhe chamou a atenção, e é comum não contarem todos os detalhes.

Normalmente nos Evangelhos, há um padrão na sequência de fatos que narram eventos semelhantes; a identificação desse padrão, por meio da leitura em conjunto e da comparação, ajuda a preencher as lacunas existentes na narração. Dessa forma, as Escrituras interpretam a si mesmas.



V - Aplicação

A compaixão de Jesus

Muitas pessoas da multidão repreenderam os dois cegos para que se calassem. Eles não entenderam o propósito de Jesus: desde que o Senhor não dera atenção ao clamor de um dos cegos no dia anterior, eles pensaram que aqueles dois mendigos cegos não tinham importância para o Mestre. Talvez pensassem que eles somente queriam uma esmola do Senhor, e não cogitaram de que eles pudessem ter fé para serem curados.

Mas não é assim com Deus: Ele ama a todos em todo o tempo e age sempre em favor dos que o buscam em sinceridade. Ele tem tudo sob controle.

  • E Jesus, parando, chamou-os, e disse: Que quereis que vos faça? Disseram-lhe eles: Senhor, que os nossos olhos sejam abertos. Então Jesus, movido de íntima compaixão, tocou-lhes nos olhos, e logo seus olhos viram; e eles o seguiram. Mateus 20:32-34

O mesmo se deu no caso da mulher siro-fenícia. Jesus não queria que alguém soubesse da Sua presença lá naquela região, mas não pôde esconder-se, porque ela o descobriu.

O Seu plano estratégico era estar a sós com os discípulos, sem que fosse detido por uma multidão local em busca de curas de enfermidades, já que o seu tempo se aproximava e ele precisava seguir em breve para Jerusalém.

Entretanto, a bênção sobre aquela mulher estrangeira, da região de Tiro e Sidom, estava também nos planos de Deus, embora parecesse que não. Deus é rico em amor e misericórdia, e o Senhor Jesus foi lá para resgatá-la.

  • Porque o Filho do homem veio buscar e salvar o que se havia perdido. Lucas 19:10



 

BIBLIOGRAFIA


BIBLIA ONLINE. Bíblia em Português versão Almeida Corrigida e Fiel, disponível em: <https://www.bibliaonline.com.br/acf>. Acesso em 6 de dez. de 2024.


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