Jesus perguntou: Pedro, tu me amas? - 1/4
- Carlos Augusto S. da Fonseca
- 16 de jan.
- 11 min de leitura
Atualizado: 30 de mar.
Uma análise do significado dos verbos gregos agapáo (ἀγαπάω) e filéo (φιλέω) usados por Jesus e Pedro em João 21:15-19
O objetivo desta série de quatro artigos é investigar o real sentido dos verbos agapáo (ἀγαπάω) e filéo (φιλέω) a partir do diálogo entre Jesus e Pedro em João 21:15-19. Ambos significam amar na língua portuguesa.
Veremos que há uma diferença clara e inegável entre agapáo e filéo. As definições constantes dos dicionários são insuficientes para a compreensão precisa do diálogo, porém o Evangelho de João fornece os parâmetros necessários para isso.

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I - Pedro, tu me amas?
No Evangelho de João 21:15-19, está escrito que Jesus perguntou três vezes a Pedro se ele o amava. É interessante que no texto grego do Novo Testamento, Jesus usou o verbo agapáo, que significa amar, e Pedro respondeu que sim, que o amava, mas usou o verbo filéo, que também é traduzido por amar. Mas na terceira vez, Jesus usou o verbo filéo, e Pedro se entristeceu. Por que houve essa alternância dos verbos agapáo e filéo? Eles têm o mesmo sentido ou há diferença no que Jesus e Pedro disseram com esses verbos? Se há diferença, qual é o ensino para nós nessa passagem?
Veja a seguir o texto que está em João 21:15-19:
15 Depois de terem comido, perguntou Jesus a Simão Pedro: Simão, filho de João, amas-me (agapáo) mais do que estes outros? Ele respondeu: Sim, Senhor, tu sabes que te amo (filéo). Ele lhe disse: Apascenta os meus cordeiros.
16 Tornou a perguntar-lhe pela segunda vez: Simão, filho de João, tu me amas (agapáo)? Ele lhe respondeu: Sim, Senhor, tu sabes que te amo (filéo). Disse-lhe Jesus: Pastoreia as minhas ovelhas.
17 Pela terceira vez Jesus lhe perguntou: Simão, filho de João, tu me amas (filéo)? Pedro entristeceu-se por ele lhe ter dito, pela terceira vez: Tu me amas (filéo)? E respondeu-lhe: Senhor, tu sabes todas as coisas, tu sabes que eu te amo (filéo). Jesus lhe disse: Apascenta as minhas ovelhas.
18 Em verdade, em verdade te digo que, quando eras mais moço, tu te cingias a ti mesmo e andavas por onde querias; quando, porém, fores velho, estenderás as mãos, e outro te cingirá e te levará para onde não queres.
19 Disse isto para significar com que gênero de morte Pedro havia de glorificar a Deus. Depois de assim falar, acrescentou-lhe: Segue-me.
João 21:15-19 versão ARA (Almeida Revista e Atualizada).
II – Uma aparente contradição e a resposta encontrada no Evangelho de João.
O verbo amar ocorre no texto grego do Novo Testamento sob duas formas: agapáo (ἀγαπάω) e filéo e (φιλέω). No Novo Testamento, verbo agapáo ocorre 143 vezes em 110 versículos [1] e o verbo filéo, 25 vezes em 21 versículos [2].
O verbo agapáo é usado para se referir ao amor perfeito de Deus, incondicional e benevolente, e ao amor semelhante a esse que deve ser praticado pelo ser humano, que não busca o seu próprio interesse, mas sim o do outro (Mateus 5:43-48; 1 Coríntios 13).
O verbo filéo (φιλέω) é definido por DANKER (2000, p. 1056) como ter afeição por, gostar, considerar alguém um amigo, enquanto apresenta o verbo agapáo com sentido mais abrangente, com destaque para o amor de Deus e dos cristãos (DANKER, 2000, p.5).
Por outro lado, o Evangelho de João emprega tanto agapáo quanto filéo em passagens semelhantes, o que parece indicar que o escritor usa esses verbos como sinônimos: o amor de Jesus por João (13:23; 19:26; 20:2; 21:7,20), o amor de Jesus por Lázaro (11:3,5,36), o amor do Pai pelo Filho (3:35; 5:20; 10:17) e o amor do Pai pelos discípulos (16:27; João 14:23). Esses versículos serão objeto de análise neste post.
A questão que surge é: se João usa os verbos agapáo e filéo como sinônimos, então seria coerente afirmar que o seu uso no diálogo de Jesus com Pedro em João 21 é apenas estilístico, sem diferenciação no sentido dos verbos. Entretanto, a ideia de que esses verbos seriam apenas sinônimos parece destoar do contexto presente nos demais escritos do Novo Testamento. [3]
Entretanto, ao contrário de serem ambíguos, esses versículos do Evangelho de João são a chave para a compreensão mais precisa, em especial, do verbo agapáo, como é demonstrado adiante (isso é possível porque, por serem esses versículos muito semelhantes, é mais fácil compará-los e isolar as situações por trás do uso dos dois verbos). A seguir, eles serão analisados por grupos.
III - Análise do significado dos verbos agapáo e filéo no Evangelho de João
O amor de Jesus por João
No primeiro grupo de versículos, a expressão a quem Jesus amava, referindo-se ao discípulo amado, ocorre quatro vezes (João 13:23; 19:26 e 21:7,20) com o emprego do verbo agapáo: hón egápa hó Iesoys (ὃν ἠγάπα ὁ Ἰησοῦς); a mesma expressão ocorre uma vez (João 20:2) com o emprego do verbo filéo: hón efílei hó Iesoys (ὃν ἐφίλει ὁ Ἰησοῦς).
O fato marcante a ser ressaltado é que, nos casos em foi usado o verbo agapáo, João e Jesus estavam fisicamente no mesmo local (próximos um do outro), mas no caso em que foi usado o verbo filéo, João não estava com Jesus.
João 19:26
Vendo Jesus sua mãe e junto a ela o discípulo amado (ἠγάπα), disse: Mulher, eis aí teu filho.
João 21:7
Aquele discípulo a quem Jesus amava (ἠγάπα) disse a Pedro: É o Senhor! Simão Pedro, ouvindo que era o Senhor, cingiu-se com sua veste, porque se havia despido, e lançou-se ao mar;
João 21:20
Então, Pedro, voltando-se, viu que também o ia seguindo o discípulo a quem Jesus amava (ἠγάπα), o qual na ceia se reclinara sobre o peito de Jesus e perguntara: Senhor, quem é o traidor?
João 13:23
Ora, ali estava conchegado a Jesus um dos seus discípulos, aquele a quem ele amava (ἠγάπα);
Então, correu e foi ter com Simão Pedro e com o outro discípulo, a quem Jesus amava (ἐφίλει), e disse-lhes: Tiraram do sepulcro o Senhor, e não sabemos onde o puseram.
O porquê do uso do verbo filéo em João 20:2.
No versículo 20:2 João empregou o verbo filéo. O contexto imediato é o texto de João 20:1-10, no qual se constata que os discípulos ainda não tinham visto o Cristo ressuscitado – o Senhor morrera na cruz por ação das autoridades judaicas e romanas, depois de ter sido traído por Judas: na mente de João, que antes tinha grandes expectativas, agora tudo estava acabado; a sua fé acerca da obra de Cristo já não existia mais.
João e os demais discípulos ainda não tinham entendido o que dizem as Escrituras, “que era necessário ressuscitar ele dentre os mortos”, como ele explica em 20:8,9. Ele voltou a crer depois que viu os lençóis no chão (20:8).
Portanto, até antes do momento em que entrou no sepulcro, João estava incrédulo e imaginava que Jesus nunca mais estaria presente com os discípulos. Assim, pela inexistência de proximidade, João utilizou o verbo filéo, e não o verbo agapáo, na frase “o outro discípulo que Jesus amava” (τὸν ἄλλον μαθητὴν ὃν ἐφίλει ὁ Ἰησοῦς) constante do versículo 20:2.
O amor de Jesus por Lázaro
O segundo grupo de versículos contém afirmações sobre o amor de Jesus por Lázaro. Em João 11:3 e 11:36, João emprega o verbo filéo, mas em João 11:5, ele emprega o verbo agapáo.
João 11:3
Mandaram, pois, as irmãs de Lázaro dizer a Jesus: Senhor, está enfermo aquele a quem amas (ὃν φιλεῖς).
João 11:36
Então, disseram os judeus: Vede quanto o amava (ἐφίλει).
João 11:5
Ora, amava (ἠγάπα) Jesus a Marta, e a sua irmã, e a Lázaro.
O porquê do uso de filéo em João 11:3 e 36.
O contexto imediato desses versículos é o capítulo 11 de João. Jesus não está presente fisicamente com Lázaro quando recebe a mensagem das irmãs dele (João 11:3) – ele estava a uma distância de dois dias (João 11:6,39). Depois, quando Jesus chegou na vila, apenas o corpo de Lázaro estava lá – não poderia haver interação, pois Lázaro já estava morto e sepultado.
Nos dois casos, não havia proximidade física entre Jesus e Lázaro; por isso se explica o emprego por João do verbo filéo, em vez do verbo agapáo, nos versículos 11:3 e 11:36.
O porquê do uso de agapáo em João 11:5.
Entretanto, quando João escreve que Jesus amava Lázaro (versículo 11:5), ele usa o verbo agapáo, mas ele se refere ao momento em que Jesus recebeu a mensagem das irmãs de Lázaro – portanto, eles não estavam fisicamente próximos, da mesma maneira que em João 11:3. Se não há proximidade física, por que então foi empregado o verbo agapáo?
No caso dos versículos de João 11:3 e 11:36, quem mencionou o amor de Jesus por Lázaro foram terceiras pessoas (o mensageiro, em João 11:3, e os judeus, em João 11:36). Todos eles tinham a percepção natural da inexistência de proximidade física entre Jesus e Lázaro (um pela distância que os separava, outros, pela separação física da morte).
Em João 11:5, porém, quem diz que Jesus amava Lázaro é o próprio João, o discípulo amado: ele sabia que Jesus não era um homem comum, mas sim o Filho de Deus (João 20:31), conhecedor de todas as coisas, Deus Todo-Poderoso (João 1:34; 11:4; Apocalipse 1:8); aquele que era o dono da vida e que tinha domínio sobre a morte: para Jesus, a morte não era uma separação, mas apenas um sono (11:11-14, 43,44).
Quando se fala do amor de Deus ou do Filho de Deus pelos seus filhos (aqueles que nele creem), não existe separação, pois Deus é Espírito e todos estão na presença de Deus, inclusive aqueles que já morreram. Por isso, João empregou o verbo agapáo no versículo 11:5, quando ele disse por observação própria que Jesus amava Lázaro e suas irmãs.
O amor do Pai pelo Filho
O terceiro grupo de versículos contém afirmações acerca do amor do Pai pelo Filho. Em João 3:35 e 10:17, é utilizado o verbo agapáo, mas em João 5:20 Jesus usa o verbo filéo na expressão igual à usada em João 3:35: o Pai ama o Filho.
Jo 3.35
O Pai ama (ἀγαπᾷ) ao Filho, e todas as coisas tem confiado às suas mãos.
Jo 10.17
Por isso, o Pai me ama (ἀγαπᾷ), porque eu dou a minha vida para a reassumir.
Jo 5.20
Porque o Pai ama (φιλεῖ) ao Filho, e lhe mostra tudo o que faz, e maiores obras do que estas lhe mostrará, para que vos maravilheis.
O porquê do uso de agapáo.
O Pai e o Filho são pessoas do Deus Único (1:1-3; 10:30 – Judas 1:25; João 17:3; Isaías 46:9) e eles estão sempre juntos (5:19; 8:16,19, 29; 14:10; 16:32). Desta forma, o emprego de agapáo em 3:35 e 10:17 para falar do amor do Pai pelo Filho tem relação com essa característica.
O porquê do uso de filéo.
Neste caso, ao se referir ao amor do Pai por ele em 5:20, Jesus estava falando a judeus incrédulos (5:38-47; 6:36). Eles não tinham o conhecimento espiritual de Deus (5:37; 6:45). Por serem incrédulos, viam Jesus como um homem comum, igual a eles; não poderiam compreender que Jesus e o Pai eram um, e até se escandalizavam com as palavras de Jesus (6:42; 8:18,19; 10:31-33).
Assim, Jesus não podia falar abertamente do amor do Pai por ele com a característica de estarem os dois juntos, pois aqueles homens não o podiam compreender; por essa razão Jesus usou o verbo filéo como está registrado em 5:20, e não o verbo agapáo. Mais tarde, porém, Jesus declarou a eles a verdade abertamente: que ele e o Pai eram um (10:30).
O amor do Pai pelos discípulos de Jesus
Há um quarto grupo de versículos, em que se fala do amor do Pai pelos discípulos, no qual o versículo João 16:27 ocorre isolado com o uso de filéo em contraste com diversos versículos, como, por exemplo, João 14:23, nos quais é empregado o verbo agapáo.
Neste caso, o uso de agapáo é normal e a diferença é explicada especificamente pelo significado do verbo filéo, que não será tratada neste post, mas sim em um próximo.
IV – A precisão de João no real sentido dos verbos agapáo e filéo
Das 143 ocorrências de agapáo no Novo Testamento, 64 vezes (45%) foram escritas por João (37 vezes no Evangelho de João e 27 vezes na sua Primeira Carta). Ele é conhecido como o apóstolo do amor.
O chamado de João por Cristo evidencia a preocupação e o cuidado de Deus com os seus amados a fim de que compreendam e pratiquem os dois maiores mandamentos, como resultado da nova vida em Cristo.
Não é por acaso que ele é referido como o “discípulo que Jesus amava”. Essa qualificação é a marca do seu chamado especial para vivenciar, compreender, ser capacitado e, em seguida, ensinar e exortar os discípulos de Cristo a praticarem os dois grandes mandamentos de Deus para o ser humano.
A preocupação de João com os leitores em relação à fé e ao cumprimento do mandamento do Senhor é recorrente nos seus textos.
Portanto, é justo afirmar que o apóstolo João tenha empregado com precisão os verbos agapáo e filéo e que ele não tenha escrito aos seus leitores com palavras ou estilos que viessem a gerar confusões.
V – Conclusão
João evidencia em seu Evangelho uma diferença de significados nos verbos agapáo e filéo, especialmente com relação a agapáo, em que o contexto está relacionado a uma proximidade física (que se estende ao âmbito espiritual quando se trata da pessoa divina) entre quem ama e quem é amado.
A partir dessa evidência mais clara em João, é possível perceber que ela está presente em todo o texto das Escrituras Sagradas.
Essa ideia de proximidade inerente a agapáo não é o sentido final do verbo, mas faz parte do seu significado em razão de sua natureza. Ela aponta para o significado especial de amar e orienta na intepretação correta do texto bíblico. É o que veremos no próximo artigo.
Próximos posts
Jesus perguntou: Pedro, tu me amas? - 2/4 (análise dos verbos agapáo e filéo)
Jesus perguntou: Pedro, tu me amas? - 3/4 (análise do verbo filéo)
Notas
[1] Precept Austin. Love (verb)-agapao (Greek Word Study). 2016. Disponível em: <https://www.preceptaustin.org/love_%28verb%29-agapao> Acesso em: 14 jan. 2025.
[2] Precept Austin. Love-Phileo (Greek Word Study). 2016. Disponível em: <https://www.preceptaustin.org/love-phileo> Acesso em: 14 jan. 2025.
[3] Alguns entendem que esses verbos têm significados diferentes, com base no contexto, enquanto outros argumentam de maneira contrária, isto é, eles seriam apenas sinônimos, com base no uso desses verbos por João em seu Evangelho. Veja discussão em Champlin (2014), p. 72, e em LOUW e NIDA (2013), p. 264.
Referências Bibliográficas
Bíblia Online. Almeida Revista e Atualizada. Disponível em: <https://www.bibliaonline.com.br/ara> Acesso em: 9 jan. 2025.
BÍBLIA. Novo Testamento trilíngüe: grego, português e inglês. Editor Luiz Alberto Teixeira Sayão. São Paulo: Vida Nova, 1998.
BÍBLIA. Antigo Testamento Poliglota: hebraico, grego, português, inglês. São Paulo: Vida Nova: Sociedade Bíblica do Brasil, 2003.
LOUW, Johannes P.; NIDA, Eugene A. (editores). Léxico Grego-Português do Novo Testamento baseado em domínios semânticos. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013.
R.N. Champlin, Ph.D. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. 12ª ed. São Paulo: ed. Hagnos, 2014. v.1.
DANKER, Frederick W. A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian Literature. 3rd editon revised and edited by Frederick William Danker. Chicado and London: The University of Chicago Press, 2000.
Apêndice
As perguntas e respostas na língua original do diálogo de João 21
Versículo 15 (Jesus pergunta pela primeira vez):
(Jesus) Σίμων Ἰωάννου, ἀγαπᾷς με πλέον τούτων;
(Pedro) λέγει αὐτῷ· Ναί, κύριε, σὺ οἶδας ὅτι φιλῶ σε.
Versículo 16 (Jesus pergunta pela segunda vez):
(Jesus) λέγει αὐτῷ πάλιν δεύτερον· Σίμων Ἰωάννου, ἀγαπᾷς με;
(Pedro) λέγει αὐτῷ· Ναί, κύριε, σὺ οἶδας ὅτι φιλῶ σε.
Versículo 17 (Jesus pergunta pela terceira vez):
(Jesus) λέγει αὐτῷ τὸ τρίτον· Σίμων Ἰωάννου, φιλεῖς με;
(Pedro) ἐλυπήθη ὁ Πέτρος ὅτι εἶπεν αὐτῷ τὸ τρίτον· Φιλεῖς με; καὶ εἶπεν αὐτῷ· Κύριε, πάντα σὺ οἶδας, σὺ γινώσκεις ὅτι φιλῶ σε.
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